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Astrónomos observam a Via Láctea a ondular, desafiando toda a lógica cósmica.

Galáxia espiral com núcleo brilhante e anéis de poeira cósmica, em fundo de céu estrelado.

Manual escolar impecável, arrumado como um disco de vinil. Mas os astrónomos apanharam agora a Via Láctea a fazer algo totalmente diferente: ondular, agitar-se e lançar formas como uma onda de estádio a câmara lenta, atravessando dezenas de milhares de anos-luz. Os instrumentos criados para mapear a nossa morada cósmica continuam a mostrar a mesma verdade estranha. A Via Láctea não está parada.

Numa noite gelada num observatório de rádio, os ecrãs brilham em azul pálido. Um investigador inclina-se, o café a arrefecer, enquanto uma rede de estrelas e gás ganha foco. O que deveria ser um plano limpo parece estranhamente vivo, como vento a ondular um lago que ninguém vê. Os pontos de dados sobem e descem em longas vagas. Sombras de pó costuram uma linha sinuosa no mapa, empurrando a imagem para uma suave forma em S que recusa alinhar-se. Alguém prende a respiração. Outro volta a verificar os números. O gráfico não estabiliza. A sala silencia-se. A Via Láctea está a fazer a onda.

A onda galáctica que ninguém previu

Imagine o disco da Galáxia como uma folha luminosa. Agora imagine essa folha a respirar. Estrelas e gás não estão apenas a orbitar o centro; estão a subir e descer em grandes arcos rítmicos. Os observadores notaram pela primeira vez um empenamento no disco exterior há anos, mas os novos mapas de todo o céu vão mais longe. Mostram pregas a ondular pela estrutura, como o rasto deixado por um barco invisível. Ao início parece errado, depois é inconfundível.

Uma pista surge de uma cadeia de nuvens formadoras de estrelas perto do nosso Sol. Os astrónomos seguiram-nas e perceberam que não eram um grupo disperso, mas sim um longo rio ondulante de gás e berçários estelares, estendendo-se por milhares de anos-luz. A estrutura serpenteia para cima e para baixo pelo braço local como se estivesse presa a um metrónomo oculto. Noutras zonas, o hidrogénio a 21 centímetros — o canal favorito dos astrónomos de rádio — inclina-se e dobra-se em sintonia com as estrelas. Diversos levantamentos, a mesma história. O disco move-se.

Porque razão se comporta uma galáxia assim? O prato limpo e plano que aprendemos era sempre uma simplificação. Um disco pode dobrar-se quando algo o puxa. Uma pequena galáxia companheira ao passar, um aglomerado de matéria escura, ou até mesmo a própria barra da Galáxia podem agitá-lo e criar ondas que demoram centenas de milhões de anos a desaparecer. Tal como uma pedra lançada num xarope espesso, o salpico permanece, suavizado pelo tempo mas nunca desaparecendo totalmente. O que vemos é movimento fóssil, ainda a ecoar.

Como os astrónomos detetaram a onda

O segredo é deixar de tratar o céu como um papel de parede e começar a vê-lo como um mar tridimensional. Com a missão Gaia, temos agora movimentos de milhões de estrelas — quão depressa se deslocam de lado, a que distância estão, e como sobem ou descem. Radiotelescópios mapeiam o frio hidrogénio que marca o esqueleto do disco. Juntando esses fios, surge um padrão: uma vaga em camadas, com estrelas e gás a subir e descer por toda a extensão da Galáxia. Não é uma onda isolada. É um coro.

Se quiser acompanhar em casa, procure os detalhes menos apelativos nos comunicados de imprensa: velocidades verticais, ângulos de fase, distâncias relativas ao plano galáctico. São essas pistas que revelam a existência de uma onda, não de um borrão. Não se deixe enganar pelas imagens perfeitas de artistas; ignoram a confusão para transmitir a ideia. Todos já tivemos aquele momento em que uma imagem bonita nos faz pensar que compreendemos a história. Sejamos honestos: ninguém o faz todos os dias.

Há um ritmo humano neste trabalho que é fácil de esquecer. Os dados chegam. O mapa recusa-se a ficar plano. Alguém afasta-se da secretária e ri, porque é mais estranho e verdadeiro do que esperava.

“Uma galáxia plana foi sempre uma caricatura; a Via Láctea é inquieta por natureza”, diz um astrónomo cuja equipa reuniu as vagas.
  • Fique atento ao próximo lançamento de dados do Gaia: movimentos ainda mais precisos, ondas mais nítidas.
  • O Square Kilometre Array irá rastrear ondulações de hidrogénio até à orla da Galáxia.
  • Mapas infravermelhos do espaço irão seguir linhas de pó que acompanham a vaga.
  • Filamentos locais de formação estelar vão mostrar como estrelas recém-nascidas surfam a onda.
  • Projetos de ciência cidadã poderão ajudar a identificar novas pregas escondidas à vista de todos.

Porque isto dobra a nossa perceção da realidade

Gostamos que o nosso “mobilário” cósmico fique onde o deixámos. A onda da Via Láctea corta esse conforto com um sorriso. Isto significa que a formação estelar não é só nuvens silenciosas a juntar-se, mas também “meteorologia” — meteorologia cósmica — moldada por encontros há muito tempo passados. Sugere que o nosso Sistema Solar navega numa vaga suave, subindo e descendo por eras sem que sintamos nada. *A Galáxia é menos uma máquina e mais uma costa viva.* Partilhe isto ao jantar e veja toda a gente prestar atenção.

Ponto chaveDetalheInteresse para o leitor
O disco da Via Láctea ondula como uma vaga lentaMuda a forma como imaginamos a nossa casa no espaço
Gaia e mapas de rádio revelam movimentos verticais e empenamentosAjuda a perceber notícias e imagens do céu que vê
Provocado provavelmente por encontros passados e ritmos internosMostra que a Galáxia tem memória — e vivemos dentro dela

Perguntas frequentes:

  • A Via Láctea continua “plana” no geral? Mantém a forma de disco, sim, mas esse disco está empenado e com pregas em vários locais, mais parecido com um vinil esquecido ao sol do que um prato perfeito.
  • Podemos sentir a onda aqui na Terra? Não. Os movimentos decorrem ao longo de milhões de anos e distâncias enormes, por isso não há efeito local que possamos sentir.
  • O que causou a onda inicialmente? Provavelmente uma mistura de passagens galácticas anteriores, aglomerados de matéria escura e padrões próprios da barra e dos espirais da Galáxia a agitarem ondas de longa duração.
  • Isto muda o local onde nascem as estrelas? Influi onde o gás se comprime, por isso pode orientar o nascimento estelar ao longo de certos arcos, tal como o surf concentra energia numa praia.
  • A onda vai desaparecer? As ondas acabam por se extinguir lentamente, mas novas forças podem reforçá-las. Em termos galácticos, esta dança pode nunca acabar de verdade.

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